Uma noite de Natal.

em 27 de dezembro de 2020



Era noite de Natal e Ally estava ali sentada sozinha no banco daquela praça vazia olhando os flocos de neve caírem um a um no chão molhado. Não gostava daquela época do ano, se sentia triste e com saudade de toda sua família que há anos já não fazia mais parte do seu dia a dia. Crescer em um orfanato e nunca ser adotado te faz sentir saudade de um maior número de pessoas, pois todos que chegam e se vão deixam um pedacinho de si para os outros.


Algumas crianças corriam pra lá e pra cá e outras tantas se esborrachavam no chão escorregadio, os pais felizes olhavam a cena com sorriso nos olhos e batiam papo entre si. Casais aproveitavam o momento para declarar seu amor, outros para fazer pequenos bonecos de neve que em breve desmoronariam e até os idosos tiravam fotos na frente da imensa arvore repleta de luzes coloridas que ficava no centro da praça.


Ally olhava agora para sua bota de esquimó e suas meias coloridas que vinham até os joelhos, havia ganhado das tias do internato quando completou quinze anos, foi um a festa incrível, todo o espaço estava decorado com bexigas super coloridas nas paredes, vermelho, rosa, amarelo, azul, a sala inteira parecia um arco-íris e quando virou seu rosto para mesa e viu aquele bolo enorme e suculento só sabia sorrir, depois de cantar parabéns abriu seus presentes e lá estava a meia, que nunca mais desejou tirar dos pés, mas como sabia que um dia elas estragariam, foi decidido que seriam usadas somente em datas especiais, como hoje, o Natal.


Estava com vinte e três anos, trabalhava na loja de departamento Sweet e Cool e alugava um quarto no terceiro andar de um apartamento na Avenida vinte e três, o apartamento possuía mais dois quartos, em um deles vivia Doris, uma moça esquisita de 33 anos que usava o cabelo rosa e coturnos pretos, tinha tantos piercings no rosto que não era possível contar. No outro Luna, 26 anos, pacata, só estava ali ate que terminassem seus estudos, mal abria a boca e nunca se reunia com ninguém.


Ally também não tinha amigos, desde que saíra do orfanato há três anos foi o único lugar em que pôde  pagar com o pouco salário que recebe da loja, seus únicos colegas eram os do trabalho, mas sem muita aproximação, a vida era difícil, gostaria muito de estudar para ser enfermeira, mas a grana era muito curta e arrumar outro emprego estava tão difícil quanto se aquecer naquele Natal.


Na sua frente, em um outro banco de madeira acabara de se sentar um rapaz, calça jeans escura, sobretudo quadriculado de marrom e preto e uma touca gigante que cobria suas orelhas e metade de suas sobrancelhas, vestia tênis próprios para o gelo, algo caro e que ela nunca pôde comprar, mas que ajudaria muito nos tombos que levava nas noites de inverno voltando pra casa. Percebeu que ele a olhava de soslaio, e não entendia muito bem por que, será que sua meia colorida chamava a atenção? Estava concentrada nele também, suas mãos não saiam dos bolsos do casaco e parecia estar sentindo muito frio, mesmo com aquele monte de roupas que vestia. Quando menos esperava seu celular tocou no bolso de trás da calça, o que fez com que ela desse um pequeno pulo de susto e o rapaz risse discretamente.


- Alô


- Minha queria, feliz Natal, estou te ligando um pouco mais cedo antes que as linhas fiquem congestionadas.


Era engraçado, tia Duta nunca se acostumava com a modernidade dos celulares que nunca tinham suas linhas congestionadas.


- Oi Tia Duta, que saudade, feliz Natal para todos vocês do internato, como estão as coisas?


- Tudo bem minha querida, estamos na luta, hoje completamos o número de 30 internos entre crianças e adolescentes.


- Se precisar de ajuda no fim de semana me diga, estarei de folga e posso dar um pulo até aí.


- Fique tranquila, a passagem de trem é muito cara e sei que você está com suas dificuldades financeiras, onde vai passar essa noite?


- Com uns amigos, eles me convidaram para cear.


Era uma grande mentira, mas ela não podia contar que voltaria pra casa e comeria um pouco de feijão enlatado antes de dormir.


- Que bom minha querida, fico feliz que esteja fazendo novos amigos, agora preciso desligar, ainda tenho muitas ligações para fazer.


- Um beijo tia Duta, amo você.


- Um beijo Ally, sinto sua falta. Tchau, tchau.


Sempre que falava com tia Duta sentia aquele aperto no peito de saudade, desde que fizera dezoito anos não parara de pensar um só dia que aos vinte precisaria se despedir, o medo de estar sozinha no mundo ainda pairava dentro dela. Mesmo nunca tendo ninguém de verdade a vida dentro do internato sempre teve uma proteção superficial, e agora era ela por si própria e nada mais.


O rapaz continuava ali, se balançava de um lado para o outro como quem esta agitado esperando por alguma coisa, Ally começou a observá-lo discretamente, sem entender muito bem o que ele esperava tanto ali naquele lugar. De repente ele se levantou, Ally virou o rosto para o lado rapidamente fingindo estar focada em duas crianças que montavam seu boneco de neve, mas de canto de olho podia ver que ele se aproximava, em linha reta, e somente ela estava ali, inevitavelmente virou o rosto e encontrou diretamente os olhos do rapaz esquisito.


- Olá, posso me sentar aqui?


- Sim, fique à vontade.


- Estava te observando de longe e pelo tempo acredito que esteja sozinha.


Meu Deus, será que ele era um maníaco, psicopata, doentio?


- É, bem, estou, por quê?


- Me chamo David


Ele estendeu a mão, usava luvas pretas de lã que continha tantas bolinhas brancas que poderia chutar que tinham mais de três anos.


- Ally


- Também não tem companhia para a noite de Natal?


- Na verdade sim, estou apenas passando um tempo por aqui.


Quem acreditaria nisso?


- Ah, você trabalha na Sweet e Cool não trabalha?


Meu Deus, além de psicopata ele estava me seguindo.


- Sim.


- Estive lá essa semana e você me atendeu.


Nossa, ela atendia tantas pessoas que realmente não conseguia se lembrar, focou nos olhos, provavelmente nesse dia ele deveria estar um pouco mais arrumado.


- Eu atendo muitas pessoas, desculpe, fica um pouco difícil me lembrar.


- Ah claro eu entendo. Mas você foi bastante simpática, me ajudou a escolher um suéter, quando te vi aqui sozinha pensei que pudéssemos conversar, sou novo na cidade.


Acho que ele não é um psicopata, talvez possa baixar um pouco a guarda.


- Espero ter ajudado mesmo na escolha rs, está aqui a trabalho?


- Sim, acabo de ser promovido, a vaga era exclusivamente para essa cidade, então, tive que vir.


- Imagino que seja difícil se ver só em algum lugar desconhecido em pleno Natal.


- É péssimo, me sinto perdido, não conheço ninguém e não faço ideia do que fazer essa noite.


- Eu sei bem como é, também vivo sozinha por aqui.


- Faz tempo que está na cidade?


- Na verdade sempre estive, moro aqui desde muito novinha, mas há três anos que mudei para um quarto de aluguel.


- Deixar a vida com os pais é um tanto difícil não é, minha mãe mesmo já me ligou dez vezes hoje.


- Na verdade não tenho pais, vivia em um orfanato e quando completei a maior idade tive que partir.


- Oh meu Deus me desculpe, não quis ser indiscreto.


- Fique tranquilo, são vinte e três anos vivendo essa vida, já estou acostumada.


- Deve ser muito difícil, eu nem posso imaginar.


- É, não posso dizer que não adoraria ter vivido com meus pais e irmãos em uma casa grande fazendo churrasco no jardim aos domingos, mas a gente aprende a viver conforme a vida vai nos levando.


O silêncio se fez presente por alguns segundos, imaginava que ele estivesse pensando sobre, sempre que contava para alguém sua história de vida as pessoas tendiam a ficar pensativas e querer agradá-la de alguma forma, era engraçado até, claro que se sentia triste, mas não mais abalada.


- Poxa, depois de tudo isso passar o Natal sozinho em uma cidade desconhecida nem me pareceu tão difícil assim rs.


- Olha, não tenho com quem passar a ceia de Natal, achei que você pudesse ser um psicopata maluco e menti, podemos dar uma volta pelo bairro e eu te mostro alguns lugares que serão importantes para o seu dia a dia.


- Juro que não vou cortar sua garganta e te colocar dentro de uma caçamba cheia de gelo.


- Então tudo bem.


Caminharam pelo bairro contando suas histórias de vida, David cada vez mais impressionado com tudo que Ally já passara ate ali, descobriram gostos em comum, trapalhadas de adolescente e ate mesmo as artes da infância, Ally mostrou cafeterias baratas, lavanderias e restaurantes de comida chinesa, David contou um pouco sobre seu trabalho e sobre os rapazes com os quais dividia o apartamento.


O tempo passou depressa para os dois, riram bastante ate a barriga doer e de repente ela passou a roncar.


- Acho que estou com fome.


- Eu também, sabe de algum lugar aberto?


- Sim, o restaurante Village iria oferecer uma ceia de Natal hoje.


- Então vamos.


- Sinto não poder te acompanhar.


- Ué, mas porque se você não tem companhia? E não me parece daquelas que fez um banquete para comer sozinha em casa.


- Não mesmo rs, eu nem ao menos sei cozinhar.


- Então?


Não tinha resposta, e isso era vergonhoso.


- É.


- Já provei que não sou um psicopata.


- Tenho apenas cinco pratas.


- Ah, fala sério, depois de você ter me apresentado todos os restaurantes de comida chinesa? Você é minha convidada.


- Claro que não, o Village não é um dos restaurantes mais baratos por aqui.


- Vamos lá, é noite de Natal e você é minha única amiga na cidade.


- Ta bom, mas depois quero me redimir.


- A gente vê isso depois, agora vamos que estou morrendo de fome.


- Bora.


A ceia foi incrível, comida boa, pessoas animadas, boas bebidas e risadas, cada minuto das horas que se passavam Ally e David se aproximavam cada vez mais, a conversa fluía naturalmente como se já se conhecessem há anos, como se suas almas houvessem sido predestinadas a se encontrar. Saíram do restaurante e foram caminhando pelas ruas vazias rumo ao apartamento de Ally, o céu estava lindo naquela noite de inverno e quando ambos olharam para o céu uma linda estrela cadente apontou lá no alto, inacreditável, ambos contemplaram aquele momento em silêncio e assim que ela passou parecia que tudo poderia dar certo dali pra frente.


- Acho que nunca tinha visto uma dessas em toda a minha vida.


- Nem eu Ally, que momento incrível.


- Feliz Natal David


- Feliz Natal Ally


Um abraço demorado e aconchegante se fez, finalmente, depois de tantos anos sozinha Ally sentiu que em David poderia ter a companhia tão esperada, não sabia ainda o que aquilo se tornaria, talvez apenas uma amizade, talvez algo mais, o importante era que em vinte e três anos havia passado hoje sua mais linda noite de Natal.


- Aqui é minha casa.


- Muito obrigada pela noite de hoje, acho que foi meu Natal mais especial.


- Tenha certeza que pra mim também.


- Nos vemos amanhã?


- Sim, estarei de folga posso te mostrar a outra parte da cidade.


- Será ótimo. Boa noite Ally.


- Boa noite David.


A noite de Natal sempre será conhecida como um momento mágico, os astros sorriam agora por juntar duas almas que ainda teriam tanto o que viver, e se Ally não acreditava em papai Noel a partir daquela noite teve certeza de que ele existia. Antes de entrar em casa olhou para o céu e deu uma piscadinha e como em um passe de mágica teve a impressão de que as estrelas piscaram de volta.

2020

em 26 de dezembro de 2020


Boa tarde Amantes das letras, como vocês estão?

Espero que estejam bem nessa ultima semana de 2020.

Confesso pra vocês que esse final de ano foi bastante estranho, vocês também sentiram isso? 

Ao mesmo tempo que eu desejo muito que esse ano acabe eu ando bastante desanimada, não sei se pelo fato de que nesse fim de ano não temos muito o que comemorar, ainda que estejamos bem, muitas pessoas ao redor do mundo não estão, foram tempos difíceis, constituídos de perdas e sofrimento, talvez inconscientemente nosso subconsciente não nos deixe festejar. 

O Ano pra mim foi cheio de coisas maravilhosas, eu sou uma das pessoas abençoadas que não tem absolutamente nada do que reclamar, muito pelo contrário, tenho somente o que agradecer, porém, ainda assim não me sinto animada. 

Tenho medo eu acho, medo do futuro que esta por vir, essa pandemia veio para mostrar pra humanidade que estamos fazendo algo de muito errado, chegou pra fazer todo mundo enxergar o que de verdade importa, nos fazer desacelerar e olhar pro lado, dar atenção ao nosso presente e cuidar de nós e do nosso próximo, veio pra mudar a forma como vemos o mundo, mas, tenho medo, porque com tudo isso conseguimos perceber o quanto o ser humano pode ser podre e egoísta, que mesmo com tudo acontecendo, ainda tenha gente que não mudou absolutamente nada e continua defendendo absurdos e perdendo tempo com coisas insignificantes.  

Ontem parei pra pensar no futuro, será que vale mesmo a pena essa ansiedade desenfreada pelo que ainda nem sabemos se virá? 
Vale mesmo a pena perder o nosso hoje com sentimentos tão ruins como depressão e angustia por um dia lá na frente que nem sabemos se chegará? 
Quantos abraços, beijos e risadas nós perdemos por estarmos tão irritados com problemas que não nos cabe resolver?
Já parou pra pensar que todas as pessoas que a gente ama tem um tempo limitado aqui na terra e não sabemos quanto tempo isso dura?
Vale a pena deixar de ficar abraçado com sua mãe, ou passar um tempo com seus amigos, ou ate mesmo sentar no sofá pra ver um filme com o seu parceiro, pra trabalhar loucamente e ficar estressado querendo mais e mais e mais. 

Não sei dizer, não sei até quando é eficiente desejarmos mais uma casa com quatro quartos do que um chamego no nosso animal de estimação, ou um carro do ano ao invés de fazer um churrasco com os amigos. 

As vezes eu olho ao redor e vejo uma tremenda perda de tempo. Perda de vida. 

2020 me fez pensar mais sobre isso, será que não queremos demais e esquecemos de evoluir nosso espirito de maneira grandiosa que melhore a vida dos que estão ao nosso redor. O que vale a pena de verdade? 

Pra 2021 eu não desejo nada além de sabedoria e saúde, é isso que a gente precisa, precisamos de muita sabedoria pra entender de uma vez por todas o que é felicidade. 

Liberdade Necessária

em 20 de dezembro de 2020

 



Eu disse pra ele, aquilo não combinava comigo, ou ligávamos o fogo de vez ou ia direto pra geladeira, simples assim, eu nunca gostei de meio termos. Pra mim não existe meio amor. Meia vontade. Meio desejo. Ou é ou não é.


E ele partiu, virou as costas e foi embora, eu olhei ele caminhar por um bom tempo na estrada, enquanto o corpo dele se movia e tudo o que já havíamos vivido se afastava, eu lembrava delicadamente de cada um dos momentos, mais ou menos especiais, sempre tive uma boa memória, e ai comecei a refletir se havia vivido tudo sozinha ou se em algum momento ele realmente se entregou de corpo e alma, ou tentou, acreditando que poderia dar certo.


Meu coração batia forte e cada vez que sua presença se afastava um pouco mais eu sentia como se o cordão imaginário que nos unia se dissipasse e meu corpo fosse ficando cada vez mais leve, comecei a me dar conta, nesse momento, do quanto nossa relação consumia a minha energia e o quanto aquele peso, definitivamente, estava sendo demais pra mim.


Por muitas vezes na vida não nos damos conta do que é real e do que estamos apenas criando em nosso imaginário a partir da vontade imensa que temos de viver tudo aquilo, aquelas histórias, emoções e momentos que vivem somente dentro de nós.


Por vezes é preciso parar, olhar ao nosso redor e entender o que de fato é nosso e o que é real. Deixar que a ilusão de possuir aquilo que se deseja esteja presente ali onde nunca esteve é um crime fatal contra si próprio.


Pedi que ele fosse, praticamente abri a porta para que ele saísse com mais facilidade da minha vida, mas por mais que doa, em alguns momentos é preciso virar a chave e destrancar uma porta que já deveria estar aberta há muito tempo.


Olhei sua sombra sumindo assim que fez a curva, respirei fundo e pela primeira vez em anos pude perceber como realmente é sentir a dor da liberdade necessária.


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