Era noite de Natal e Ally estava ali sentada sozinha no banco daquela praça vazia olhando os flocos de neve caírem um a um no chão molhado. Não gostava daquela época do ano, se sentia triste e com saudade de toda sua família que há anos já não fazia mais parte do seu dia a dia. Crescer em um orfanato e nunca ser adotado te faz sentir saudade de um maior número de pessoas, pois todos que chegam e se vão deixam um pedacinho de si para os outros.
Algumas crianças corriam pra lá e pra cá e outras tantas se esborrachavam no chão escorregadio, os pais felizes olhavam a cena com sorriso nos olhos e batiam papo entre si. Casais aproveitavam o momento para declarar seu amor, outros para fazer pequenos bonecos de neve que em breve desmoronariam e até os idosos tiravam fotos na frente da imensa arvore repleta de luzes coloridas que ficava no centro da praça.
Ally olhava agora para sua bota de esquimó e suas meias coloridas que vinham até os joelhos, havia ganhado das tias do internato quando completou quinze anos, foi um a festa incrível, todo o espaço estava decorado com bexigas super coloridas nas paredes, vermelho, rosa, amarelo, azul, a sala inteira parecia um arco-íris e quando virou seu rosto para mesa e viu aquele bolo enorme e suculento só sabia sorrir, depois de cantar parabéns abriu seus presentes e lá estava a meia, que nunca mais desejou tirar dos pés, mas como sabia que um dia elas estragariam, foi decidido que seriam usadas somente em datas especiais, como hoje, o Natal.
Estava com vinte e três anos, trabalhava
na loja de departamento Sweet e Cool e alugava um quarto no terceiro andar de
um apartamento na Avenida vinte e três, o apartamento possuía mais dois
quartos, em um deles vivia Doris, uma moça esquisita de 33 anos que usava o
cabelo rosa e coturnos pretos, tinha tantos piercings no rosto que não era possível
contar. No outro Luna, 26 anos, pacata, só estava ali ate que terminassem seus
estudos, mal abria a boca e nunca se reunia com ninguém.
Ally também não tinha amigos,
desde que saíra do orfanato há três anos foi o único lugar em que pôde pagar com
o pouco salário que recebe da loja, seus únicos colegas eram os do trabalho,
mas sem muita aproximação, a vida era difícil, gostaria muito de estudar para
ser enfermeira, mas a grana era muito curta e arrumar outro emprego estava tão difícil
quanto se aquecer naquele Natal.
Na sua frente, em um outro banco
de madeira acabara de se sentar um rapaz, calça jeans escura, sobretudo quadriculado
de marrom e preto e uma touca gigante que cobria suas orelhas e metade de suas
sobrancelhas, vestia tênis próprios para o gelo, algo caro e que ela nunca pôde comprar, mas que ajudaria muito nos tombos que levava nas noites de inverno
voltando pra casa. Percebeu que ele a olhava de soslaio, e não entendia muito
bem por que, será que sua meia colorida chamava a atenção? Estava concentrada
nele também, suas mãos não saiam dos bolsos do casaco e parecia estar sentindo
muito frio, mesmo com aquele monte de roupas que vestia. Quando menos esperava
seu celular tocou no bolso de trás da calça, o que fez com que ela desse um pequeno
pulo de susto e o rapaz risse discretamente.
- Alô
- Minha queria, feliz Natal,
estou te ligando um pouco mais cedo antes que as linhas fiquem congestionadas.
Era engraçado, tia Duta nunca se
acostumava com a modernidade dos celulares que nunca tinham suas linhas congestionadas.
- Oi Tia Duta, que saudade, feliz
Natal para todos vocês do internato, como estão as coisas?
- Tudo bem minha querida, estamos
na luta, hoje completamos o número de 30 internos entre crianças e
adolescentes.
- Se precisar de ajuda no fim de
semana me diga, estarei de folga e posso dar um pulo até aí.
- Fique tranquila, a passagem de
trem é muito cara e sei que você está com suas dificuldades financeiras, onde
vai passar essa noite?
- Com uns amigos, eles me convidaram
para cear.
Era uma grande mentira, mas ela
não podia contar que voltaria pra casa e comeria um pouco de feijão enlatado
antes de dormir.
- Que bom minha querida, fico
feliz que esteja fazendo novos amigos, agora preciso desligar, ainda tenho
muitas ligações para fazer.
- Um beijo tia Duta, amo você.
- Um beijo Ally, sinto sua falta.
Tchau, tchau.
Sempre que falava com tia Duta
sentia aquele aperto no peito de saudade, desde que fizera dezoito anos não
parara de pensar um só dia que aos vinte precisaria se despedir, o medo de
estar sozinha no mundo ainda pairava dentro dela. Mesmo nunca tendo ninguém de
verdade a vida dentro do internato sempre teve uma proteção superficial, e
agora era ela por si própria e nada mais.
O rapaz continuava ali, se
balançava de um lado para o outro como quem esta agitado esperando por alguma
coisa, Ally começou a observá-lo discretamente, sem entender muito bem o que
ele esperava tanto ali naquele lugar. De repente ele se levantou, Ally virou o
rosto para o lado rapidamente fingindo estar focada em duas crianças que montavam
seu boneco de neve, mas de canto de olho podia ver que ele se aproximava, em
linha reta, e somente ela estava ali, inevitavelmente virou o rosto e encontrou
diretamente os olhos do rapaz esquisito.
- Olá, posso me sentar aqui?
- Sim, fique à vontade.
- Estava te observando de longe e
pelo tempo acredito que esteja sozinha.
Meu Deus, será que ele era um maníaco,
psicopata, doentio?
- É, bem,
estou, por quê?
- Me chamo David
Ele estendeu a mão, usava luvas
pretas de lã que continha tantas bolinhas brancas que poderia chutar que tinham
mais de três anos.
- Ally
- Também não tem companhia para a
noite de Natal?
- Na verdade sim, estou apenas
passando um tempo por aqui.
Quem acreditaria nisso?
- Ah, você trabalha na Sweet e
Cool não trabalha?
Meu Deus, além de psicopata ele
estava me seguindo.
- Sim.
- Estive lá essa semana e você me
atendeu.
Nossa, ela atendia tantas pessoas
que realmente não conseguia se lembrar, focou nos olhos, provavelmente nesse
dia ele deveria estar um pouco mais arrumado.
- Eu atendo muitas pessoas,
desculpe, fica um pouco difícil me lembrar.
- Ah claro eu entendo. Mas você foi
bastante simpática, me ajudou a escolher um suéter, quando te vi aqui sozinha
pensei que pudéssemos conversar, sou novo na cidade.
Acho que ele não é um psicopata, talvez
possa baixar um pouco a guarda.
- Espero ter ajudado mesmo na
escolha rs, está aqui a trabalho?
- Sim, acabo de ser promovido, a
vaga era exclusivamente para essa cidade, então, tive que vir.
- Imagino que seja difícil se ver
só em algum lugar desconhecido em pleno Natal.
- É péssimo, me sinto perdido, não
conheço ninguém e não faço ideia do que fazer essa noite.
- Eu sei bem como é, também vivo
sozinha por aqui.
- Faz tempo que está na cidade?
- Na verdade sempre estive, moro
aqui desde muito novinha, mas há três anos que mudei para um quarto de aluguel.
- Deixar a vida com os pais é um
tanto difícil não é, minha mãe mesmo já me ligou dez vezes hoje.
- Na verdade não tenho pais, vivia
em um orfanato e quando completei a maior idade tive que partir.
- Oh meu Deus me desculpe, não
quis ser indiscreto.
- Fique tranquilo, são vinte e
três anos vivendo essa vida, já estou acostumada.
- Deve ser muito difícil, eu nem
posso imaginar.
- É, não posso dizer que não adoraria
ter vivido com meus pais e irmãos em uma casa grande fazendo churrasco no
jardim aos domingos, mas a gente aprende a viver conforme a vida vai nos levando.
O silêncio se fez presente por
alguns segundos, imaginava que ele estivesse pensando sobre, sempre que contava para
alguém sua história de vida as pessoas tendiam a ficar pensativas e querer agradá-la
de alguma forma, era engraçado até, claro que se sentia triste, mas não mais
abalada.
- Poxa, depois de tudo isso
passar o Natal sozinho em uma cidade desconhecida nem me pareceu tão difícil assim
rs.
- Olha, não tenho com quem passar
a ceia de Natal, achei que você pudesse ser um psicopata maluco e menti,
podemos dar uma volta pelo bairro e eu te mostro alguns lugares que serão
importantes para o seu dia a dia.
- Juro que não vou cortar sua
garganta e te colocar dentro de uma caçamba cheia de gelo.
- Então tudo bem.
Caminharam pelo bairro contando suas
histórias de vida, David cada vez mais impressionado com tudo que Ally já
passara ate ali, descobriram gostos em comum, trapalhadas de adolescente e ate
mesmo as artes da infância, Ally mostrou cafeterias baratas, lavanderias e
restaurantes de comida chinesa, David contou um pouco sobre seu trabalho e
sobre os rapazes com os quais dividia o apartamento.
O tempo passou depressa para os
dois, riram bastante ate a barriga doer e de repente ela passou a roncar.
- Acho que estou com fome.
- Eu também, sabe de algum lugar
aberto?
- Sim, o restaurante Village iria
oferecer uma ceia de Natal hoje.
- Então vamos.
- Sinto não poder te acompanhar.
- Ué, mas porque se você não tem companhia?
E não me parece daquelas que fez um banquete para comer sozinha em casa.
- Não mesmo rs, eu nem ao menos
sei cozinhar.
- Então?
Não tinha resposta, e isso era
vergonhoso.
- É.
- Já provei que não sou um psicopata.
- Tenho apenas cinco pratas.
- Ah, fala sério, depois de você
ter me apresentado todos os restaurantes de comida chinesa? Você é minha
convidada.
- Claro que não, o Village não é
um dos restaurantes mais baratos por aqui.
- Vamos lá, é noite de Natal e
você é minha única amiga na cidade.
- Ta bom, mas depois quero me
redimir.
- A gente vê isso depois, agora
vamos que estou morrendo de fome.
- Bora.
A ceia foi incrível, comida boa,
pessoas animadas, boas bebidas e risadas, cada minuto das horas que se passavam
Ally e David se aproximavam cada vez mais, a conversa fluía naturalmente como
se já se conhecessem há anos, como se suas almas houvessem sido predestinadas a
se encontrar. Saíram do restaurante e foram caminhando pelas ruas vazias rumo ao
apartamento de Ally, o céu estava lindo naquela noite de inverno e quando ambos
olharam para o céu uma linda estrela cadente apontou lá no alto, inacreditável,
ambos contemplaram aquele momento em silêncio e assim que ela passou parecia
que tudo poderia dar certo dali pra frente.
- Acho que nunca tinha visto uma
dessas em toda a minha vida.
- Nem eu Ally, que momento incrível.
- Feliz Natal David
- Feliz Natal Ally
Um abraço demorado e aconchegante
se fez, finalmente, depois de tantos anos sozinha Ally sentiu que em David
poderia ter a companhia tão esperada, não sabia ainda o que aquilo se tornaria,
talvez apenas uma amizade, talvez algo mais, o importante era que em vinte e
três anos havia passado hoje sua mais linda noite de Natal.
- Aqui é minha casa.
- Muito obrigada pela noite de
hoje, acho que foi meu Natal mais especial.
- Tenha certeza que pra mim também.
- Nos vemos amanhã?
- Sim, estarei de folga posso te
mostrar a outra parte da cidade.
- Será ótimo. Boa noite Ally.
- Boa noite David.
A noite de Natal sempre será conhecida como um momento mágico, os astros sorriam agora por juntar duas almas que ainda teriam tanto o que viver, e se Ally não acreditava em papai Noel a partir daquela noite teve certeza de que ele existia. Antes de entrar em casa olhou para o céu e deu uma piscadinha e como em um passe de mágica teve a impressão de que as estrelas piscaram de volta.